Quando os primeiros casos de Covid-19 no País foram
registrados no fim de fevereiro, coincidindo com o início da chamada
"temporada de gripe", os médicos temeram pelo pior. Um novo vírus muito
contagioso se somaria a todos os outros patógenos respiratórios que
costumam circular nesta época do ano, atingindo sobretudo as crianças.
Mas a realidade se revelou bem diferente. A ocorrência dessas outras
doenças caiu em mais de 70%. As internações de casos pediátricos graves
foram reduzidas em 80%.
Os hábitos de isolamento social, uso de máscara e higiene pessoal
redobrada adotados por causa da pandemia foram os grandes responsáveis
pela queda expressiva das outras doenças respiratórias no País, segundo
especialistas ouvidos pelo Estadão, comprovando a eficácia das barreiras
físicas na disseminação de micróbios. Praticamente não tivemos
"temporada de gripe". E as crianças foram as mais poupadas.
O número de ocorrências de síndromes respiratórias graves causadas pelo
vírus sincicial respiratório (VSR), um dos mais comuns entre março e
junho, caiu 76,4% entre janeiro e agosto deste ano quando comparado à
média dos últimos três anos nos mesmos meses. Os casos de gripe também
despencaram - uma redução de 62,2%. Os números são do sistema Infogripe,
da Fiocruz.
"Todo o cenário estava armado para termos uma temporada especialmente
grave de influenza este ano", afirma Marcelo Gomes, coordenador do
Infogripe. "Já tínhamos registrado um número de casos de gripe acima da
média em fevereiro, bem antes do período em que costuma começar a
temporada, mais perto do inverno. Além disso, tínhamos tido uma
temporada muito forte de influenza no Hemisfério Norte e, quando isso
ocorre, a tendência é se repetir por aqui."
Em meados de março, no entanto, as medidas de isolamento social tiveram
início, as escolas foram fechadas, e as campanhas para estimular a
lavagem das mãos e o uso do álcool gel tomaram conta da mídia. Embora a
máscara não tenha sido recomendada num primeiro momento, logo em seguida
ela também foi adotada por parte da população.
"A partir daí o que vimos foi uma queda significativa e brutal dos casos
graves de síndromes respiratórias", aponta Gomes. "As ações que tomamos
para tentar diminuir a velocidade de disseminação da covid foram
eficientes para os outros vírus respiratórios que têm a mesma dinâmica
de transmissão."
Os dados do Infogripe mostram que o número de ocorrências graves de
influenza de janeiro a agosto de 2019, por exemplo, foi de 6 mil, ante
menos de 2 mil no mesmo período deste ano. Nos oito primeiros meses do
ano, o número de casos de síndrome respiratória grave causada pelo vírus
sincicial respiratório caiu de 5.765 em 2019 para 1.047 este ano.
Segundo Gomes, a subnotificação é desprezível, porque o painel só
registra os casos muito graves, em que os pacientes precisam ser
hospitalizados.
Margareth Dalcolmo, pneumologista da Fiocruz, cita que também colaborou
para esta queda a alta cobertura que a vacinação contra influenza
alcançou neste ano. Logo que o coronavírus chegou ao Brasil, as
autoridades de saúde incentivaram a vacinação justamente como medida
para evitar a ocorrência de várias doenças respiratórias ao mesmo tempo,
o que poderia aumentar a procura por hospitalização, prejudicando ainda
mais a oferta. De acordo com o DataSus, a cobertura superou os 90% da
população alvo no País.
Mas se as medidas foram tão eficientes contra os outros vírus, por que,
então, os casos de covid não foram controlados também? A principal
explicação é que a capacidade de transmissão do Sars-Cov-2 é bem maior
do que a dos outros vírus - e este é um dos motivos que o tornam
potencialmente mais perigoso. Se o isolamento social - ainda que parcial
em muitos Estados - não tivesse sido feito, a tragédia da covid-19
teria sido bem maior
As crianças foram as mais poupadas
A queda mais significativa no número de casos de outras gripes ocorreu
entre as crianças. Com todas as escolas do País fechadas, elas realmente
ficaram mais isoladas durante a maior parte da epidemia. Além disso,
diferentemente do que ocorre em outras doenças respiratórias, elas não
são o alvo preferencial da covid-19. Os mais vulneráveis são os adultos e
os idosos.
Um novo estudo do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino (Idor) revelou que
as internações por infecções respiratórias comuns em UTIs pediátricas
tiveram uma queda de 80% em 2020 em comparação com os três anos
anteriores.
"As UTIs pediátricas ficaram muito vazias", relata o pediatra José
Colleti Jr, coordenador da UTIP do Hospital Assunção, em São Bernardo do
Campo, que participou do estudo. "Muitas delas, inclusive, fecharam
porque não tinham pacientes e acabaram sendo transformadas em UTIs de
covid. Alguns intensivistas pediátricos fizeram cursos rápidos e foram
transferidos para unidades de adultos."
O estudo foi feito em parceria com a Rede Brasileira de Pesquisa em
Terapia Intensiva Pediátrica em 15 hospitais da Rede D'Or em Rio de
Janeiro, São Paulo, Recife e Distrito Federal. A confirmação dos
primeiros casos de covid no fim de fevereiro e começo de março,
coincidindo com o início da temporada sazonal de doenças provocadas por
vírus respiratórios, alarmou os médicos, sobretudo os pediatras, porque
as crianças, normalmente, são mais vulneráveis aos patógenos
respiratórios.
"Nesta época do ano, normalmente, as emergências pediátricas ficam
lotadas, prontos socorros fecham por não terem condições de atender mais
doentes, falta vaga em UTIs pediátricas", enumera Colleti Jr. "Quando o
novo coronavírus surgiu, não sabíamos como ele se comportaria em
crianças. Ficamos com muito medo que se somasse às doenças que já
tínhamos normalmente provocando uma verdadeira tragédia. Mas aconteceu
justamente o contrário."
"Não é que os vírus deixaram de existir, mas eles não circularam de
forma tão intensa", afirma a pediatra Patrícia Barreto, presidente do
Departamento de Doenças do Aparelho Respiratório da Sociedade de
Pediatria do Estado do Rio de Janeiro (Soperj). Segundo Patrícia, uma
lição importante a ser mantida depois da volta às aulas, é que crianças
com qualquer sintoma de doença respiratória, como febre e coriza, não
devem ser mandadas para a escola como muitas vezes costumava ser feito.
Fonte: O Tempo
0 Comentários