Para cada quilo de
cimento usado pela construção civil são necessários, pelo menos, outros
quatro quilos de areia. É a proporção mínima necessária para a formação
do agregado de concreto, base de qualquer edificação. A produção
industrial de cimento, contabilizada e regulada mensalmente, é o espelho
que reflete a contabilidade do invisível. Enquanto, em 2018, foram
produzidas 53,5 milhões de toneladas de cimento no País, o consumo
estimado de areia é quatro vezes isso, em torno de 214,2 milhões de
toneladas.
Mas a produção real declarada de areia foi de 76,7 milhões de toneladas.
Os 137,4 milhões de toneladas restantes é a quantidade estimada de
areia extraída ilegalmente, sem autorização dos órgãos competentes,
sobretudo a Agência Nacional de Mineração (ANM). O nível de ilegalidade
representa amplos 64,17% de todo o consumo. Convertida em dinheiro, essa
produção ilegal chega aos R$ 13 bilhões anuais, um dado inédito obtido
pela reportagem.
O montante acima simplificado é calculado numa complexa matemática que
envolve estudos de preços de mercado e produção por IBGE, Caixa
Econômica Federal, Sindicato Nacional de Produção de Cimento (SNIC) e
Agência Nacional de Mineração.
Essa estimativa da ilegalidade é até mais conservadora do que usada pela
ONU, que aponta três partes de areia para cada parte de cimento. O
responsável pelo levantamento mais atualizado é o pesquisador brasileiro
Luis Fernando Ramadon, referência internacional nos estudos sobre o
impacto da extração ilegal de areia no mundo.
É um número surpreendente, mais do que todos os demais crimes
ambientais, diz Ramadon, especialista em Direito Ambiental e mestre em
Recursos Hídricos, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
Seu interesse no tema começou ao se surpreender com a quantidade de
areais ilegais no município fluminense de Seropédica e o esforço no
combate pela Polícia Federal, da qual é um agente especial.
O pesquisador e policial passou a capacitar outros agentes federais no
combate à máfia desse minério, mas não sem admitir a complexa missão. A
areia é muito fácil de se pegar. O caminhão para na beira do rio e
transporta diretamente para o consumidor. Muitas vezes as construtoras
compram esse material sem saber que é ilícita a areia, pois os
criminosos usam notas fiscais frias e fazem lavagem de dinheiro em cima
da areia. É algo muito forte no Brasil.
A fragilidade
Quando Maria Ailda Malveira sonhou acordada com a casa própria, fez um
churrasco para inaugurar. Saiu do de favor, depois do aluguel e,
finalmente, estava num lar para chamar de seu, no município cearense de
Horizonte. A doméstica foi uma das beneficiadas, em 2015, pelo programa
Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal, que realiza o sonho da casa
própria para pessoas de baixa renda pagarem com suaves parcelas.
Ficou tão grata que não fez caso de algumas imperfeições nas paredes
rebocadas com tinta a cal, ou alguns resíduos soltando na extremidade
dos encanamentos. Tem mais é que agradecer. Tem gente com menos ou
nada.
Mas começou a cair uma e outra chuva, a parede foi ficando úmida. Mais
que isso, rachaduras começaram a surgir na altura dos encanamentos, como
se a água correndo no cano empurrasse a parede, que aos poucos se
transformava em grãos, literalmente.
Mulher, a minha casa tá se desfazendo, comentou com a vizinha de
porta, que relatou o mesmo. Apenas cinco meses desde o churrasco de
inauguração, os moradores do bloco 11 do Minha Casa Minha Vida, no
Bairro Diadema, chegaram à constatação de que as casas estavam se
desfazendo.
No telejornal, Ailda viu que no Rio de Janeiro tinha morador reclamando
da mesma situação e acionou a Justiça. Quis fazer o mesmo. Vou botar
pra frente isso, porque tá certo que a gente paga pouco, é R$ 35 por
mês, mas o barato pode sair caro e, pelo que a gente vê, é milhões de
dinheiro que o Governo paga pra construir. Quando chegou à agência da
Caixa Econômica Federal de Horizonte ouviu que a gente não tem o que
fazer, a Caixa paga pra construtora fazer.
Mãe de duas crianças, com quem mora sozinha desde que o marido foi
embora, a doméstica aproveitou um dia de folga das faxinas e colocou
cimento nas rachaduras.
Ailda não está sozinha e, se alcançasse a Justiça Federal, encontraria
vários depoimentos iguais ao seu, em denúncias movidas pelo Ministério
Público Federal, em Brasília. Pelo menos 230 delas nos últimos três
anos, de acordo com a Procuradoria Geral da República (PGR), resultaram
em procedimentos. A importância do programa habitacional chamou atenção
para o que seria óbvio, não fosse o invisível: a areia de baixa
qualidade, quando não imprópria para construção civil, está na base da
fragilidade estrutural apresentada pelas residências, algo não restrito a
programas públicos, mas recorrentes em construções privadas.
Caso emblemático no Brasil deu-se em fevereiro de 1998, com o
desmoronamento do edifício residencial Palace II, no Rio de Janeiro,
matando oito pessoas.
Embora o laudo não atestasse como causa principal, a perícia atestou a
má qualidade do material do concreto entre os itens que apontavam a
fragilidade da estrutura.
Rende mais do que o tráfico de drogas
Segunda posição no ranking de crimes globais, o trafico de drogas
movimenta entre U$ 426 e U$ 350 bilhões, seguido do tráfico da extração
ilegal de areia (entre U$ 200 e U$ 350 bilhões), mas o crime ambiental
chega a ser mais rentável. Enquanto o negócio das drogas envolve
estrutura de laboratório, armamentos e reservas para corromper forças
policiais, o tráfico de areia é, com algumas exceções, praticamente
invisível e de fácil execução. Os custos de operação, portanto, são bem
menores. Além de ser uma pena branda (multa e até seis meses de
detenção), é precária a fiscalização. O negócio é tão 'bom' que
traficantes de drogas e milicianos, que têm investido fortemente no
setor imobiliário, em estados com Rio de Janeiro e Bahia, estão roubando
areia barata e de má qualidade para construir condomínios residenciais
em territórios dominados.
Fonte: Diário do Nordeste
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